sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

no meio do caminho havia uma pedra

a nefasta sensação de pedra na estrada
me traz o pesar de existir.
por que será que não consigo afastar-me
para que desabroche a linda flor?
sim, sem a pedra a liberdade flui;
mas a que preço?
sem as raízes da flor não me apeteço
e vai-se voando com elas todo o meu apreço...

mas a inútil pedra deve encontrar energia
forças, para rolar para longe
longe do caminho tropista
do crescimento da flor em direção à luz
e trepidar até a sombra da encosta
as trevas da borda
da margem
para que pelo amor de deus
não seja avistada
fardo da escuridão.

lacuna entre beijos

passei pelos pretéritos com uma lacuna física
mas o presente tem trazindo outros estilos
outros buracos, outros brancos
que são os por dentre os beijos na bochecha.

a lacuna do calor e dos suspiros
dos anjos encobrindo-nos com suas asas
do meu refúgio nas ondas loiro-escuras
do laço entre pernas na cálida penumbra
do afago ronronoso ao raiar da manhã

a lacuna tão querida a ti
tão aclamada, tão imperativa
que me faz repelir-me para longe
em nome de tua realização
de tua completude.

i'm going back to the start

mágoas gosmentas

página em branco
me atormenta e me sacode
a fim de soltar a costura entre o palmo e a boca.
ah, o terror de que esses laços se desfaçam!
que a cachoeira de cola polar se deslanche
num avalanche de cutucadas e puxões.

ai de mim,
criatura esponjosa
pegajosa
repulsiva aos olhos instigantes
cujos braços esticados a ninguém apetece
como imerso em bolha verde
achatando castelos de areia ao atravessar
andando em direção ao amor
coberto por gosma mal cheirosa.

nem um abraço, nem um beijo
o monstro tem chance de ganhar.
corcunda de angústia, umidecem os olhos tristonhos
águas das mágoas dissolvem a costura
e os braços carentes são enrolados em torno de si.
o verde líquido então jorra mais e mais,
grudando pelas pernas
e pelo tronco
pescoço
até que enfim o monstro é encurralado
e afogado por sua própria carência,
em sua bolha
em sua solidão.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

cobertorzinho

feito cobertor transicional jazo no fundo do armário
nadando congelada pelas trevas do esquecimento,
à mercê de qualquer tenro desejo de acolhimento
que o faça abrir as portas
e iluminar meu rosto
com ternura tal que diga:
ah, cobertorzinho
como pude passar tantos milênios sem abraçá-lo?
e assim meu tecido tremerá de sorrisos
na esperança de que seja uma vez por todas útil
de que meu carinho seja necessário e almejado,
assim como a uma criança e para sempre será.

mas meu dono já cresceu
meu trabalho se deu por finito.
e após alguns minutos de aconchego ele se realiza
ao sentir minha textura e meu aroma, em um momento de fraqueza
a partir dos quais recobre as energias
para mais alguns anos de potência.
assim, o cobertor recebe um último abraço
antes de ser devolvido àquele coração de traças
que o devorará, vivo, pouco a pouco
sem que aquele o perceba
pois sua vida segue, e a do cobertor, extingue.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

poço do absurdo

espíritos do cansaço arrastam-me para o poço
poço arenoso dos arrependimentos
caio, e agonizo por uma brecha
no meu coração e nos dos que me amam.

recaio em reclusão,
tento abraçar as vidas no entorno
mas são apenas águas-vivas
que aterrorizam-se com o meu amar
e assassinam-me com o seu queimar...

desmaio então no duro fundo do poço
semicerro os olhos e despeço-me das memórias
de lá de cima, do mundo novo e velho
ao seguir com os braços os reflexos da luz
que dançam pelas minhas pernas
varrendo-me para qualquer outro lugar
algum outro algoritmo
que me reajustará a outros sofrimentos.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

comédia grega

uma filosofia também é máscara.
deixar que falem por nós é comportamento típico do camelo no deserto,
movendo-se mais e mais em oposição à criança...
e mais uma vez a metalinguagem me invade e me mima;
confortando-me para que eu não me encontre comigo mesma
ou com o que posso ser, posso pensar, posso sentir
os símbolos me movem
não sei se à vida ou à morte
mas pelo menos não estagno...
ah! ser um incompreendido
à frente, infeliz
um idiota
e encontrar em sapatos vermelhos
o sonho de um lar
de um místico beijo de almas
uma razão para viver

mas tudo isso também são máscaras
que só seriam possíveis na lacuna
- o que também foi emprestado -
quando extorquirei de mim testemunhos genuínos?
quando o parafrasear me libertará?

eclipse

20-21.12.10


O que eu mais queria era unir-me a toda aquela grandeza, ao universo-penumbra sepulcral enfeitado com estrelas. Os astros eram as jóias que cintilavam a madrugada, a reluzência da névoa que costurava o horizonte. O mar e o céu refletiam-se em duas realidades mútuas, cujo rasgo libertaria o buraco negro que, narcísicamente, toda a Terra sugaria para si. Almadiçoado e sagrado, o laço entre esses universos exprimia, para mim, o casamento entre a alma e o corpo, Deus e humanidade... o amor dos pólos se fez no horizonte. Ele é a esperança da consumação entre todas as coisas, repelidas pela indiferença.
O tempo não existe no horizonte. A união desmancha a dimensão dos segundos do existir e o transforma no viver. O enovelar das grandezas me rouba lágrimas, e choro rezando pela fantasia da completude. Pelas costas, a expressão pura da falta, a lacuna se apoderando da Lua: o negro a devora, anunciando novas Eras. O paradoxo me seduz, e me arrasta pelas suas correntezas... regadas pela esperança, pelo risco, pela vulnerabilidade.

Eu amo o cheiro de vida pela manhã.